Congresso é contra descriminalização do aborto


Parlamentares se unem para evitar que o aborto deixe de ser crime e tentam endurecer legislação sobre o assunto


Quase sempre acusado de estar em dissonância com a opinião pública, em poucos temas o Congresso Nacional reflete tanto o que pensa a maioria dos brasileiros como no caso do aborto. A maioria dos parlamentares não só é contra a descriminalização da prática como defende, inclusive, o endurecimento da legislação sobre o assunto. Há proposições, inclusive, que tornam o aborto crime hediondo ou que o classificam como tortura.

Segundo pesquisa realizada recentemente pelo DEM (ex-PFL), 76,3% dos brasileiros são contra qualquer alteração no Código Penal para tirar o aborto da lista dos crimes previstos no país. No Congresso, o conservadorismo do eleitor faz eco: das 22 proposições ativas sobre o tema que tramitam na Câmara, 12 tornam mais rígidas as regras vigentes, enquanto nove ampliam as possibilidades de abortamento legal. Uma pode ser considerada neutra, porque prevê a convocação de um plebiscito para que a população decida.

No Senado, tramitam três propostas sobre o assunto: duas buscam atenuar as atuais regras, em vigor desde 1940, e a terceira, já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, estabelece normas para realização de plebiscito sobre o tema.

No Brasil, só é possível interromper a gravidez quando ela é fruto de estupro ou quando há risco de morte para a mãe. Fora disso, o aborto é crime, com pena prevista de um a três anos de detenção para a gestante e de um a 20 anos para o médico.

A prática é legal em qualquer circunstância em 55 países e proibida totalmente em apenas quatro: El Salvador, Chile, Malta e Vaticano. “No Brasil, é improvável que as propostas que endurecem a lei em vigor sejam aprovadas, mas também não vão passar as que legalizam a prática até a décima semana”, prevê o deputado Luiz Bassuma (PT-BA), autor de um dos quatro projetos que tornam o aborto crime hediondo.


Pelotão de resistência
Espírita kardecista, Bassuma é coordenador de uma das três frentes parlamentares criadas no Congresso especialmente para evitar que o aborto deixe de ser crime no Brasil. Apesar de informal, a frente Em defesa da vida, contra o aborto tem o apoio de 194 parlamentares.

A maioria dos opositores à descriminalização da prática está distribuída entre a Frente parlamentar da família e apoio à vida, com 215 membros, e a Frente parlamentar contra a legalização do aborto, pelo direito à vida, com 230 integrantes. O pelotão de resistência é formado ainda pelos 43 congressistas que compõem a bancada evangélica.

Apesar desses números expressivos, não é possível precisar quantos deputados e senadores resistem a qualquer mudança na lei do aborto, sancionada há 67 anos. Isso porque vários deles participam de mais de uma frente.

De qualquer forma, esse grupo é responsável pela existência de mais proposições que endurecem a atual legislação em comparação com as propostas que pretendem atenuar a norma legal.


Divisão interna
Do lado oposto desse cabo de força, até agora, não há nenhum movimento organizado de parlamentares. No Congresso, os principais defensores da legalização do aborto são ativistas em defesa dos direitos humanos e mulheres ligadas a movimentos feministas, com destaque, na atual legislatura, para as deputadas Cida Diogo (PT-RJ) e Luciana Genro (Psol-RS). Ambas são autoras de projetos que legalizam a interrupção da gravidez em caso de anencefalia (ausência de cérebro) do feto.

Extremamente polêmica, a questão ultrapassa, inclusive, barreiras partidárias. Há uma semana, a ex-senadora Heloísa Helena, presidente do Psol, recebeu sonora vaia de seus colegas de partido ao evocar argumentos científicos e religiosos para evitar que o partido aprovasse uma moção de apoio à descriminalização do aborto. Heloísa se reelegeu presidente da legenda, mas acabou derrotada em sua posição sobre o assunto.

Mesmo sendo o partido do presidente da Frente parlamentar contra a legalização do aborto, deputado Leandro Sampaio (RJ), o PPS divulgou nota assumindo a defesa da descriminalização do aborto. No Senado, quando foi informado de que o DEM fecharia questão contra a legalização, o senador Heráclito Fortes (PI) correu até a tribuna para anunciar que discordava do comando de seu partido. “Essa não é uma questão programática, mas, sim, de consciência”, reclamou.


Saúde pública
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que no Brasil sejam provocados anualmente mais de 1,2 milhão de abortos clandestinos. Em 2006, complicações resultantes de interrupções de gravidez levaram à internação de 230 mil mulheres no Sistema Único de Saúde (SUS), o que custou ao Estado cerca de R$ 33 milhões. Em Salvador, abortos ilegais são a principal causa de mortalidade materna.

O assunto voltou a ganhar destaque no cenário nacional durante a visita do papa Bento XVI ao Brasil, em maio. Enquanto o papa fazia sua pregação contra a prática, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, não fugiu da polêmica ao defender a discussão imediata da questão.

Temporão repetiu que considera o debate sobre a legalização do aborto uma discussão de saúde pública e não religiosa e chamou de agressivos os líderes católicos que censuram as discussões sobre o aborto. “Não é possível ignorar que milhares de mulheres se submetem a esse procedimento e as pessoas digam que nada está acontecendo”, avaliou.

Ativistas em favor da descriminalização também destacam que a descriminalização do aborto é uma questão de saúde pública. “O problema não é dizer quando começa a vida, mas, sim, dizer que a vida da mulher também tem valor”, argumenta Elizabeth Saar, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), citando a principal questão de impasse entre defensores e críticos da legalização.

Apesar de os grupos contrários à liberalização da lei serem majoritariamente ligados a igrejas cristãs, principalmente a católica e as evangélicas, os parlamentares evitam vincular suas posições a argumentos religiosos. “Sou católico, mas a frente é composta por movimentos em favor da vida e o que queremos é mostrar que não está diretamente vinculado às igrejas, embora elas sejam importantes”, explica Leandro Sampaio.

Luiz Bassuma cita pesquisas que concluem que a vida começa no momento da concepção. Recorre, também, ao artigo 2º do Código Civil, que “põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro [termo modernamente utilizado em substituição a feto]”.

“Cada um acredita no que lhe é colocado. Como ele afirma que cientistas dizem que existe vida a partir da fecundação, outros cientistas dizem que até a terceira semana é apenas um macerado de células, sem características orgânicas que remetem à vida, como um sistema nervoso”, critica a também petista Cida Diogo, autora de um dos projetos que legalizam o aborto em caso de anencefalia.


Briga na Justiça
Há pouco tempo o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, decidiu favoravelmente ao aborto em casos de ausência de cérebro. A decisão, porém, foi cassada pelo próprio Supremo, após fortes protestos liderados pela Igreja Católica.

Recentemente, o STF realizou audiência pública para tentar chegar a uma definição sobre qual corrente científica a legislação brasileira deve seguir: se a que afirma que há vida desde a concepção ou a que diz que só pode ser considerado vivo o ser humano que tem um sistema nervoso ativo, ou seja, com ao menos dez semanas de gestação.

O tribunal ainda não tem uma posição oficial, mas, segundo Bassuma, a tendência é que opte pelo caminho do meio e decida que, para fins legais, a vida tem início no momento em que o embrião se fixa na parede do útero, o que acontece entre o sétimo e o décimo dia de gravidez. Desse modo, não seria considerado atentado contra a vida a pesquisa com embriões produzidos in vitro ou mesmo o uso da pílula do dia seguinte. Mas o aborto, sim.

“Não é direito da mulher decidir, ela não pode decidir pela vida de outras pessoas, como o bebê. Não quer ficar com a criança, entregue para a adoção”, sentencia Leandro Sampaio. “Nós somos claramente contra o aborto porque ele é uma interrupção de um projeto de vida que não pertence mais a um homem, pertence a Deus e à Criação”, acrescenta o bispo Robson Rodovalho (DEM-DF), presidente da Frente da família e apoio à vida.


Entre o endurecimento e a liberação
As proposições que ampliam as situações em que pode ser realizado o aborto legal dividem-se basicamente em quatro vertentes. Seis propostas descriminalizam a interrupção de gravidez caso não haja perspectiva de sobrevivência após o nascimento; três legalizam a prática em qualquer circunstância, variando apenas o estágio limite da gravidez que poderá ser interrompida; um legaliza o aborto caso a mulher seja vítima de qualquer tipo de violência, não só o estupro; e o último obriga o SUS a realizar os abortos permitidos em lei.

Por outro lado, as propostas que endurecem a legislação em vigor seguem os seguintes caminhos: cinco delas criminalizam o aborto em caso de gravidez fruto de estupro, sendo que um deles transforma em crime a interrupção de gravidez também quando houver risco de morte para a mãe e outro tipifica o aborto ilegal como crime hediondo; três transformam o aborto em crime hediondo; dois o incluem entre os crimes de tortura; um cria a Semana Nacional de Prevenção do Aborto; e outro cria um programa de orientação das mães sobre os riscos do aborto legal.

Há, ainda, dois projetos, um tramitando na Câmara e outro no Senado, que tratam da realização de plebiscito para que a população decida se o aborto deve ser legalizado no Brasil. Um deles, o PDS 1494/2004, de autoria do senador Gerson Camata (PMDB-ES), é a única das 26 proposições cuja tramitação teve avanço considerável: foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado em dezembro de 2006 e será agora analisado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa.


Crime hediondo
Apesar de praticamente não terem avançado desde que foram apresentadas, as propostas que transformam o aborto ilegal em crime hediondo são as que mais preocupam ativistas em defesa da legalização. Isso porque, de acordo com a Lei dos Crimes Hediondos (8072), o condenado por esse tipo de crime não pode receber anistia, graça ou indulto nem ser libertado mediante pagamento de fiança. Além disso, só tem direito a progressão de regime o criminoso hediondo que cumprir, no mínimo, 2/5 da pena – para os demais crimes, basta cumprir 1/6.

“É absurdo tornar criminosa a mulher que toma decisão muito difícil e em um momento de muita preocupação. Ela não faz isso rindo. Da mesma forma o médico que resolve ajudar para dar condições de higiene e saúde não pode ser taxado de criminoso”, avalia a deputada Cida Diogo. 


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